Sufoco

 

Naquela noite tempestuosa ela abriu os olhos e imediatamente se arrependeu. Quis voltar a dormir no mesmo instante e fingir que nunca tinha despertado. Pois quando captou a imagem que se projetava a sua frente quis arrancar os globos oculares e guarda-los trancados em uma caixa para que nunca mais vissem nada tão terrível. Talvez trancar as duas orbes em uma sala escura para amplificar o efeito.
A luz dura que invadia o quarto naquele instante vazava pela janela como uma mancha branca elástica se derretendo pelo soalho, contornando os móveis e projetando sombras na parede incandescente. O som repentino do trovão que soou ao lado de fora foi quase capaz de acalmá-la. Quase. Desejava apenas desver a cena grotesca que se apresentava, mas era impossível e sabia que nunca esqueceria aquele primeiro momento de pavor de quando abriu os olhos para vê-lo estendido no chão.
O coração palpitando a uma velocidade absurda que ela não era capaz de calcular, as veias e artérias expostas à luz repentina do relâmpago nada propício. Vermelho escorrendo pelos tecidos e músculos cardíacos que se dilatavam e contraíam no ritmo desenfreado dos batimentos; a cor rubra brilhante no centro da mancha branca de luz que entrava pela janela. E ela não sabia se queria a continuação do bombeamento exposto ou que o movimento cessasse de uma vez só para não ter que continuar olhando para o órgão que lhe dava vida em pleno funcionamento, bem na sua frente, contrariando todas as leis deste ou qualquer outro universo. Porque soube, no exato momento em que o viu pulsando ainda quente e cheio da vida que deveria estar contida dentro dela, que aquele era o seu coração. Não uma metáfora ilusória, mas o órgão que deveria estar alojado no centro de seu peito, levemente inclinado para a esquerda, entre os dois pulmões e as costelas.
Soube no mesmo instante em que as pálpebras se ergueram – primeiro preguiçosas, depois alarmadas – aquele objeto-vivo fazia parte dela. E teve de se esforçar para não enlouquecer com o fato (sim, já era um fato constatado) de poder vê-lo e senti-lo ao mesmo tempo. Nenhum doutor ou filósofo saberia explicar o ocorrido, duvidava que fossem sequer capazes de imaginar tal aberração fora de um conto de horror. Mas era o que ela via (e sentia) e tinha certeza de que não estava mais sonhando. Julgá-la-iam insana ou esquizofrênica por defender sua tese: era aquele o seu coração.
Já podia se imaginar explicando a situação para alguém:
“Olá, esse é meu coração, poderia cuidar dele enquanto vou buscar um café?”
Parecia-lhe absurdo demais até mesmo para ela.Estranhou não ter gritado ensandecida logo após a constatação, e mais estranho ainda era que tivesse chegado àquela conclusão com tanta facilidade, sem forçar o raciocínio ou depender de longas reflexões morais. Mas como poderia não reconhecer seu próprio coração? Impossível! (Ainda mais impossível do que enxerga-lo diante de si). Podia distinguir todas as marcas físicas do tecido muscular cardíaco, e mesmo as emocionais lhe pareciam mais evidentes a cada novo vislumbre do órgão. Era capaz de contar as cicatrizes invisíveis deixadas por um rompimento amoroso, outra da vez em que seu sonho foi despedaçado por intempéries incontroláveis do mundo externo, e mesmo a mancha roxa escura que identificava o ponto em que ele iniciava algum novo ciclo doloroso. Também percebeu as veias brilhantes que perpassavam o pedaço luminoso em que estavam alojados seus sonhos e aspirações, e tomou cuidado para não toca-lo com medo que se esfacelasse. Identificou o pedacinho prestes a se romper por aquele novo drama cotidiano e no mesmo instante uma pontada aguda atingiu seu peito no lugar onde deveria estar o coração. Então… ainda o sentia. Uma pena que o mito de arrancar seu coração não fosse o suficiente para evitar sofrimentos quaisquer. Mesmo separados, ainda estavam unidos. Caso contrário, poderia mesmo trancá-lo em uma caixinha envolta em correntes e esquecer-se de sua existência até que um dia parasse de bater e pudessem se juntar novamente.
Uma pena, que ilusão…
Uma tristeza profunda e antiga lhe atingiu e teve vontade de chorar por ela e seu coração separados-e-juntos ao mesmo tempo.
“Não!” – ordenou encarando o órgão rubro, que bateu contrariado antes de obedecer a ordem. As lágrimas pareceram retornar para dentro antes que vertessem por seus olhos. Espantou-se e logo sorriu com a descoberta. Mas antes do regozijo a tomar, o coração se apressou em sua vingança pelas lágrimas retidas e cortou a ligação com a felicidade repentina. O sorriso murchou ainda nascendo e ela entendeu que aquele era um jogo para dois. Encarou-o desgostosa e ele, triunfante.
Esperou que lhe desse alguma nova instrução, ansiosa por saber o que saberia, por fazer tudo o que faria e sonhando com o que sonharia. Nada aconteceu. Ele permaneceu no chão ao seu lado, pulsando insolente, como se nem se importasse com sua presença.
Então, fez a única coisa que lhe pareceu plausível após tantas conclusões apressadas: pegou-o com as mãos que se encharcaram com a viscosidade e o sangue e travou uma luta de vontades por alguns momentos, tentando aproxima-lo dos lábios enquanto o coração insistia em se afastar. Em uma bocada, engoliu-o de volta e sentiu um alívio percorrer seu corpo e espírito quando ele se acomodou em seu peito, levemente inclinado para a esquerda, entre os pulmões e as costelas.
Ainda hoje, vez ou outra, ainda é capaz de senti-lo se agitando, entalado em sua garganta querendo ser cuspido para fora novamente.
“Fique quieto, rapaz”, dizia. E o contrariado coração escorregava pela garganta e voltava a bater no interior de seu peito.

 

A rainha da beleza

[A rainha da beleza está adormecida].
Quando aquele primeiro pensamento desprovido de intenção cruzou sua mente, já era tarde demais. Não era capaz de se recordar quando dormira pela última vez, sabia apenas que sua vigília durava dias que poderiam facilmente ser transformados em semanas ou anos. Ou que ele jamais seria capaz de dormir novamente até o dia em que a morte o levasse para o outro mundo. [Existe outro mundo?]. Naquele único instante pacífico, pensava na mulher com quem compartilhara quase quarenta anos de sua vida – e no dia de sua morte.
“Teria feito sessenta e sete anos hoje.”

Pulsos

Na primeira inspiração forçada, quando o ar gelado se infiltrou nos minúsculos pulmões, Mariana soube que havia algo errado com o filho que lhe era arrancado as pressas do útero. Não por intuição materna ou forças ocultas lhe ocupando a mente, mas por razão muito mais simples: ele viera ao mundo em completo silêncio, sem choros ou berros. Na verdade, não produzira som algum: nem do chacoalhar dos braços e pernas gorduchos, nem os murmúrios ou gemidos naturais dos recém-nascidos. Somente o silêncio profundo e sufocante preencheu a sala de parto naquele dezessete de julho. Mais tarde, vieram os médicos com a notícia pela qual ela esperava:
– Houve complicações durante o parto, tivemos de fazer uma opção emergencial por conta de um erro clínico… Desculpe-me, senhores, seu filho não possui mais um coração. – foram as desculpas do cirurgião a ela e ao marido.

Divagações de Ninguém a respeito do Brasil…

Estou intoxicada pela revolução (sim, eu disse revolução!). Orgulhosa – talvez pela primeira vez em meus poucos dezoito anos de vida – de dizer que sou brasileira. Depois de acompanhar todas as manifestações dos últimos dias, fui intoxicada pelos protestos, manifestações e diversas causas que desencadearam isso tudo. Os 0,20 centavos deixaram de ser o ponto central da discussão, e quem ainda se apega a isso deveria parar para refletir um pouco mais sobre toda a movimentação. Críticas à parte – contra os atos ISOLADOS e MINORITÁRIOS de vandalismo, além da violência policial e excessos cometidos – hoje estou orgulhosa do povo brasileiro. Podem me perguntar: e daí? Quem é você para falar isso e por que eu me importaria com a sua opinião, Diana?