Botão Emergencial

Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
Você é louco?
Não, sou poeta.

Mário Quintana

Em caso de emergência, quebre o vidro.
Ou rompa o lacre. Ou puxe a alavanca. Ou aperte o botão. Não importa a forma quando mensagem é significativa por si própria.
Sempre que vejo orientações como essa em elevadores, janelas de ônibus, paredes de prédios residenciais e comerciais ou onde mais elas decidam ser pregadas, penso em como a vida seria melhor caso as pessoas também tivessem uma alavanca ou botão o qual pudéssemos pressionar em caso de emergência.
Imagino um mundo onde todos nós teríamos um botãozinho na nuca para que qualquer um possa acionar quando passamos dos limites racionais que nos orientam desde o surgimento da humanidade. Os tais limites e padrões mudaram — a duros custos, porque o ser humano é teimoso e não gosta da possibilidade de ter de sair de sua zona de conforto por nenhum instante — mas o princípio é o mesmo. Discussões conceituais infinitas podem ser travadas com uma infinidade ainda maior de argumentos, mas não é esse o ponto central desse texto. Demoramos séculos para alcançar um nível de liberdade de expressão em que podemos professar o que quisermos… Desde que estejamos prontos para arcar com as consequências. Alguns parecem se esquecer dessa última parte.
Mas voltemos ao Botão Emergencial (sim, esse seria o nome do mecanismo). Quando penso em como isso seria aplicável em uma raça onde a palavra de ordem máxima é intolerância a opiniões divergentes, as coisas se complicam. Então, irei ignorar essa característica aparentemente primordial da mente humana, ou ao menos diminuí-la a um nível controlável pelo tal botão. Antes de explanar suas aplicações, é bom pensar no que exatamente esse botão faria ao ser acionado. Não, ele não seria uma arma. Ninguém seria morto pelo acionar do botão, nem mesmo ferido física ou mentalmente. A única coisa que o Botão faria, a exemplo dos mecanismos de emergência de elevadores, ônibus e prédios, seria soar um alarme. Sim, uma sirene de tom agudo e insuportável soaria na mente do sujeito. O som seria apenas interno, como um cutucão na consciência alheia para alertá-lo de sua provável incoerência.
Muitos poderiam dizer que nesse mundo hipotético teríamos ainda mais intolerância, provocando uma certa “ditadura da opinião”. Afinal, se todos saíssem por aí apertando botões alheios sem a menor tentativa de diálogo — algo que nunca ocorre no mundo atual, é claro — então logo iria se espalhar mais ódio e destruição pelo mundo. Mas, no meu Maravilhoso Mundo da Disney Hipotético, o Botão não poderia ser usado para nenhuma forma manipulação ou de modo ditatorial, sem exceções. Além disso, ninguém poderia apertar o Botão simplesmente por discordar da opinião alheia; seu propósito não é o de uniformizar o pensamento. Por último, o Botão seria utilizado apenas após todas as tentativas de diálogo terem falhado, como recurso final aos indigentes mais persistentes.
Seria uma forma pacífica e indolor de manifestar indignação com certos comentários que escutamos por aí. O primeiro alvo seria aquele adora gritar ao mundo sua opinião sem nem ao menos considerar se é realmente isso o que pensa ou está apenas bancando o papagaio e repetindo um monólogo incutido em sua mente por terceiros. Ou o famoso argumento do “porque sim”. Praticado desde a infância, observa-se sua evolução periódica ao longo da vida para parecer menos infantil, mas os meios são os mesmos. Assim, seria mais fácil apenas pressionar o Botão Emergencial quando o diálogo coerente se prova inútil do que prosseguir em uma discussão cíclica.

Por que você acha que homossexuais não devem ter os mesmos direitos de heterossexuais? Por que você acha que negros são inferiores a brancos? Por que você acha que esquerdista e comunista é a mesma coisa? Por que você acha legal chamar uma mulher na rua de “gostosa/linda/ôlaemcasa”? Por que você não considera que outros pensem diferente de você? Por que você quer impor sua religião aos outros? Por que não aceita que seu amigo torça para outro time ou tenha preferência política diferente da sua?

“Porque sim” não é uma boa resposta para nenhuma dessas e outras tantas questões, mas é o “argumento” (cof cof) principal do primeiro alvo da magia do Botão. Toda vez que alguém dissesse algo como “porque é contra a minha moral” (A.K.A “porque sim”), poderíamos apertar o botãozinho em sua nuca e imediatamente o sujeito se daria conta de que sua moral pode ser diferente da minha, de que nem tudo o que ele pensa é uma verdade absoluta, que o mundo é muito maior do que o círculo que o cerca e cada indivíduo tem direito a ser o que é sem estar constantemente sendo julgado e apontado por isso. Talvez o Botão o fizesse perceber que apesar dele ser um bom cristão, outros podem ser bons islâmicos/judeus/umbandistas e cada um deles vê o mundo de uma forma – e nenhum está errado! Talvez o Botão fosse a ferramenta que o permitisse abrir os olhos para as diferenças no mundo e aceitá-las sem fazer caretas de desaprovação. Talvez ele passasse a cumprimentar seu vizinho homossexual com o mesmo respeito usado com o heterossexual. Talvez ele percebesse ser negro não é sinônimo de ser ladrão e que o preconceito que cresceu dentro dele é infundado. Talvez a sirene o incomodasse tanto que ele se forçasse a parar e pensar antes sair por aí repetindo maledicências que ouviu sem se preocupar com a verdade (ou não) de suas palavras. Talvez, e apenas talvez, isso o forçaria a ter opiniões próprias.
Depois, não mudado seu pensamento, poderia ainda continuar gritando todos os tipos de preconceitos ou opiniões (sic) pelo mundo. Poderia continuar achando que negros fazem trabalho mal-feito, que homossexuais são uma abominação da natureza e pobre só é pobre porque não tem vontade de trabalhar. Poderia ainda professar seu ódio a outros, mas teria ao menos refletido a respeito antes. Poderia querer espancar um casal gay com uma lâmpada florescente, mas ao fazê-lo saberia de suas consequências. Poderia olhar torto para o candidato esquerdista e xingá-lo de comunistas desgraçado, ordenar que volte para Cuba e ainda assim não estaria errado, caso tivesse consciência de suas palavras. Poderia, inclusive, isolar-se do mundo para não ter de conviver com tantas raças, gêneros, identidades, visões de mundo, religiões e opiniões diferentes. Poderia ignorar a pluralidade da raça humana e viver dentro de sua bolha particular. Nada disse seria errado (apenas mais uma dentre as tantas opiniões controversas desse mundo), desde que antes esse sujeito tivesse parado por um momento e realmente pensado a respeito de tudo isso. Cinco minutos, um dia, uma semana, dez anos: não importa. Parar. Pensar. Questionar. Só então, falar, professar e discutir da forma que achar conveniente. Botão algum é capaz de mudar isso, mas também ninguém pode parar as ramificações que se expandem a cada segundo nesse mundo gigantesco. Basta decidir como viver com esse fato.

Aos jovens cordeiros, de quem lhes quer bem.

Os breves relatos de um homem covarde a respeito daquilo que não é capaz de entender completamente.

Ouço os helicópteros, e tenho medo.
Eles voam acima do concreto sobre minha cabeça, e apesar de haver várias camadas de tijolo e cimento entre mim e as hélices malditas, eu tenho medo. Temo que as longas varas metálicas se aproximem demais, destroçando o frágil vidro de minhas janelas, que o piloto adormeça, a nave se desvie de seu curso original e colida contra a massa cinzenta que forma minha parede, que o fogo da explosão consuma meus livros repousados em cima da mesa…
Mas, acima de tudo, temo pela fragilidade de minha alma, sustentada apenas por vagos apegos à moralidade.
(Creio… em Deus Pai Todo Poderoso… Não, crença tola essa. Creio… na força do povo… Não, crença errônea essa. Creio… em quê?)
Nunca fui muito corajoso, mas agora a covardia demasiada parece ter-se apoderado de mim, enterrando-se em minhas veias, cravando suas garras nocivas em minha carne.