Cerca elétrica

Há uma cerca elétrica naquela casa. Uma barreira de fios metálicos dotada de propriedades altamente condutoras, de acordo com os especialistas, devido sua ductilidade e caráter metálico. Há uma rede de energia elétrica a alimentando e mantendo aquela cerca funcionando perfeitamente. Se um pássaro desatento pousar em um de seus fios nada impedirá que a carga frite suas perninhas inocentes, imploda seu corpinho frágil e faça com que ele se imobilize para sempre.
Há uma cerca elétrica rodeando aquela casa imponente, um guarda-máquina que trabalha em tempo integral sem remuneração alguma; que não necessita de oito horas diárias de sono para se manter operacional – sua única fonte de alimento é a energia que percorre incansavelmente seus longos fios. Nada impede seu funcionamento pleno, desde que se mantenha abastecido da energia mortal. Chuva, vento, neve ou sol não incomodam seu sistema mecânico, projetado para ser o melhor segurança deste mundo.
Mais uma cerca na sociedade, mais uma divisão, um novo tipo de segregacionismo barato – bem, nem tão barato. Ou será contenção? Cerca para quê? Para quem?
É a cerca elétrica que afasta os indesejáveis violadores da falsa pacificidade humana, ou quem fecha os olhos daqueles em seu interior para a existência deles. São fios compridos, esticados em linhas paralelas, dotados da frieza humana e da força da natureza (mesmo que artificial). Mais um instrumento que serve à hipocrisia: constrói-se como uma arma neutra para a suposta proteção individual, a não-violação da privacidade se põe acima de todo o resto. Não sabem de quem se protegem, nem o porquê. Mas as cercas existem mesmo assim. Nunca olharam nos olhos daqueles que tentam afastar com suas dezenas, centenas ou milhares de volts programados para se atiçarem ao menor contato. Não tentaram sair da inércia, quebrar os “padrões de segurança”. A cerca não é o problema, mas, sim, o desespero provocado por sua necessidade. Esse, sim, nos faz querer gritar.
Há uma cerca elétrica naquele casarão ficcional. O jardim também é enorme e separa a cerca da casa – dupla divisa para os menos afortunados, ou mais desprovidos de ilusão. Cercas-vivas cobrem as grades altas antes dos fios elétricos se esticarem horizontalmente nas pontas, os arames fazendo sua curva para dentro do jardim: mantenha-se longe! São trepadeiras densas, heras malditas que transformam as grades espaçadas em uma expeça colcha verde.
Cerca-viva, cerca-morta: uma visão desprezível do excesso de zelo. Ambas escondem, mais adiante, a varanda apertada, com suas colunas de madeira sustentando o telhadinho que cai sobre ela. É uma daquelas casas surreais dos filmes hollywoodianos, do tipo que não se vê em qualquer esquina desse imenso país. Poderiam ter optado por outra varanda, sem colunas, ou varanda alguma, mas uma área ampla e descoberta, mas preferiram a segurança da imitação. Cópia da cópia, cercada por aquela energia invisível – ao menos até ser tocada.
Há uma cerca naquela casa, e ninguém entende por quê. Mais absurdo, há colunas brancas escondidas pela cerca, pela grade, pela hera. E ainda, há um extenso jardim que não deixa ninguém saber da hipocrisia de seus moradores. Talvez, então, seja esse o propósito da cerca: não assegurar a propriedade e as vidas daqueles em seu interior, mas exila-los para impedir que outros testemunhem sua vergonha. Talvez os inquilinos pensem que a cerca dá à casa um ar de mistério, um segredo conhecido apenas por aqueles que têm o privilégio de passar pelo portão cerrado.
Talvez haja uma mulher histérica vivendo naquela casa assustadoramente fantasiosa, que goste apenas da própria companhia e a de mais ninguém; portanto, cerra-se no interior de sua cerca elétrica. Impede o mundo de alcança-la.
Talvez haja um homem sisudo que não suporte olhares estranhos enquanto senta em sua varanda fictícia e bebe uma cerveja gelada. Ele não gosta de ser perturbado, seja por conhecidos ou desconhecidos, sofre de uma grande fobia social que o impele a permanecer trancado dentro de casa pelo máximo de tempo possível. Às vezes sai para ir até o mercado, mas desiste, volta na metade do caminho e faz compras online. Impede-se de alcançar o mundo.
Talvez seja uma casa de repouso para aqueles que buscam a tranquilidade em meio ao turbilhão da cidade tão ruidosa. É onde se reúnem os loucos, os fóbicos, os entediados, os relaxados, os ansiosos, os mal-amados, os sacanas, os desentendidos, os pseudo-intelectuais, os depressivos, os iludidos, o falhos, os manequins… Uma infinidade de desencaminhados se aglomerando no mesmo lugar. Isolam-se do restante do mundo.
Uma infinidade de “talvez” pode ser descrita na tentativa de justificar as cercas, grades e jardim que protegem a casa surreal. Nenhum deles é completamente correto ou oferece cem por cento de certeza: apenas suposições dramáticas de uma mente inquieta. Não existe certeza do saber, diria, mas não desejo ser filosófica aqui. Também não sei o que desejo além de uma bonita casa com cerca elétrica, exatamente como aquela dos filmes.

Metamorfose, primeira

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Sentada na sarjeta: não, esparramada. Enfiada dentro do microvestido vermelho, as pernas abertas deixavam a mostra a roupa íntima – cor-de-rosa – sem o menor pudor. Maquilada, antes; agora, borrada. Rímel e lápis: o negro escorrendo pela face macilenta, formando a máscara da vergonha não demonstrada, nem sentida. Vergonha alheia, daqueles que passavam pelo cordão lançando olhares desaprovadores em sua direção. Não eram necessários subtítulos, o escândalo era suficientemente grandioso por si só.
Tentava montar a imagem anterior, reconstruí-la em meio aos tons apagados de cinza, mas as memórias lhe escapavam com muita facilidade. Lembrava apenas das cores vívidas e do calor vivo. Arco-íris e chamas; mais nada. Mas as cores escorriam pelo bueiro, e o calor era todo sugado pelo ar gelado, pela neblina se condensando ao redor. Se ao menos tivesse alguns fósforos como a tal pequenina vendedora dos contos infantis… Não; restava apenas o vestido desalinhado, as pernas tortas e a máscara de um falso carnaval veneziano. Sem espectro eletromagnético, apenas o concreto cinzento. Sem brasas mornas da fogueira, apenas a lembrança do calor instantâneo. Nada mais.
Ergueu-se. Era hora da metamorfose diurna; novamente, transvertir-se.

Imagem: http://www.deviantart.com/art/Metamorphosis-86673803

Pulsos

Na primeira inspiração forçada, quando o ar gelado se infiltrou nos minúsculos pulmões, Mariana soube que havia algo errado com o filho que lhe era arrancado as pressas do útero. Não por intuição materna ou forças ocultas lhe ocupando a mente, mas por razão muito mais simples: ele viera ao mundo em completo silêncio, sem choros ou berros. Na verdade, não produzira som algum: nem do chacoalhar dos braços e pernas gorduchos, nem os murmúrios ou gemidos naturais dos recém-nascidos. Somente o silêncio profundo e sufocante preencheu a sala de parto naquele dezessete de julho. Mais tarde, vieram os médicos com a notícia pela qual ela esperava:
– Houve complicações durante o parto, tivemos de fazer uma opção emergencial por conta de um erro clínico… Desculpe-me, senhores, seu filho não possui mais um coração. – foram as desculpas do cirurgião a ela e ao marido.