Sufoco

 

Naquela noite tempestuosa ela abriu os olhos e imediatamente se arrependeu. Quis voltar a dormir no mesmo instante e fingir que nunca tinha despertado. Pois quando captou a imagem que se projetava a sua frente quis arrancar os globos oculares e guarda-los trancados em uma caixa para que nunca mais vissem nada tão terrível. Talvez trancar as duas orbes em uma sala escura para amplificar o efeito.
A luz dura que invadia o quarto naquele instante vazava pela janela como uma mancha branca elástica se derretendo pelo soalho, contornando os móveis e projetando sombras na parede incandescente. O som repentino do trovão que soou ao lado de fora foi quase capaz de acalmá-la. Quase. Desejava apenas desver a cena grotesca que se apresentava, mas era impossível e sabia que nunca esqueceria aquele primeiro momento de pavor de quando abriu os olhos para vê-lo estendido no chão.
O coração palpitando a uma velocidade absurda que ela não era capaz de calcular, as veias e artérias expostas à luz repentina do relâmpago nada propício. Vermelho escorrendo pelos tecidos e músculos cardíacos que se dilatavam e contraíam no ritmo desenfreado dos batimentos; a cor rubra brilhante no centro da mancha branca de luz que entrava pela janela. E ela não sabia se queria a continuação do bombeamento exposto ou que o movimento cessasse de uma vez só para não ter que continuar olhando para o órgão que lhe dava vida em pleno funcionamento, bem na sua frente, contrariando todas as leis deste ou qualquer outro universo. Porque soube, no exato momento em que o viu pulsando ainda quente e cheio da vida que deveria estar contida dentro dela, que aquele era o seu coração. Não uma metáfora ilusória, mas o órgão que deveria estar alojado no centro de seu peito, levemente inclinado para a esquerda, entre os dois pulmões e as costelas.
Soube no mesmo instante em que as pálpebras se ergueram – primeiro preguiçosas, depois alarmadas – aquele objeto-vivo fazia parte dela. E teve de se esforçar para não enlouquecer com o fato (sim, já era um fato constatado) de poder vê-lo e senti-lo ao mesmo tempo. Nenhum doutor ou filósofo saberia explicar o ocorrido, duvidava que fossem sequer capazes de imaginar tal aberração fora de um conto de horror. Mas era o que ela via (e sentia) e tinha certeza de que não estava mais sonhando. Julgá-la-iam insana ou esquizofrênica por defender sua tese: era aquele o seu coração.
Já podia se imaginar explicando a situação para alguém:
“Olá, esse é meu coração, poderia cuidar dele enquanto vou buscar um café?”
Parecia-lhe absurdo demais até mesmo para ela.Estranhou não ter gritado ensandecida logo após a constatação, e mais estranho ainda era que tivesse chegado àquela conclusão com tanta facilidade, sem forçar o raciocínio ou depender de longas reflexões morais. Mas como poderia não reconhecer seu próprio coração? Impossível! (Ainda mais impossível do que enxerga-lo diante de si). Podia distinguir todas as marcas físicas do tecido muscular cardíaco, e mesmo as emocionais lhe pareciam mais evidentes a cada novo vislumbre do órgão. Era capaz de contar as cicatrizes invisíveis deixadas por um rompimento amoroso, outra da vez em que seu sonho foi despedaçado por intempéries incontroláveis do mundo externo, e mesmo a mancha roxa escura que identificava o ponto em que ele iniciava algum novo ciclo doloroso. Também percebeu as veias brilhantes que perpassavam o pedaço luminoso em que estavam alojados seus sonhos e aspirações, e tomou cuidado para não toca-lo com medo que se esfacelasse. Identificou o pedacinho prestes a se romper por aquele novo drama cotidiano e no mesmo instante uma pontada aguda atingiu seu peito no lugar onde deveria estar o coração. Então… ainda o sentia. Uma pena que o mito de arrancar seu coração não fosse o suficiente para evitar sofrimentos quaisquer. Mesmo separados, ainda estavam unidos. Caso contrário, poderia mesmo trancá-lo em uma caixinha envolta em correntes e esquecer-se de sua existência até que um dia parasse de bater e pudessem se juntar novamente.
Uma pena, que ilusão…
Uma tristeza profunda e antiga lhe atingiu e teve vontade de chorar por ela e seu coração separados-e-juntos ao mesmo tempo.
“Não!” – ordenou encarando o órgão rubro, que bateu contrariado antes de obedecer a ordem. As lágrimas pareceram retornar para dentro antes que vertessem por seus olhos. Espantou-se e logo sorriu com a descoberta. Mas antes do regozijo a tomar, o coração se apressou em sua vingança pelas lágrimas retidas e cortou a ligação com a felicidade repentina. O sorriso murchou ainda nascendo e ela entendeu que aquele era um jogo para dois. Encarou-o desgostosa e ele, triunfante.
Esperou que lhe desse alguma nova instrução, ansiosa por saber o que saberia, por fazer tudo o que faria e sonhando com o que sonharia. Nada aconteceu. Ele permaneceu no chão ao seu lado, pulsando insolente, como se nem se importasse com sua presença.
Então, fez a única coisa que lhe pareceu plausível após tantas conclusões apressadas: pegou-o com as mãos que se encharcaram com a viscosidade e o sangue e travou uma luta de vontades por alguns momentos, tentando aproxima-lo dos lábios enquanto o coração insistia em se afastar. Em uma bocada, engoliu-o de volta e sentiu um alívio percorrer seu corpo e espírito quando ele se acomodou em seu peito, levemente inclinado para a esquerda, entre os pulmões e as costelas.
Ainda hoje, vez ou outra, ainda é capaz de senti-lo se agitando, entalado em sua garganta querendo ser cuspido para fora novamente.
“Fique quieto, rapaz”, dizia. E o contrariado coração escorregava pela garganta e voltava a bater no interior de seu peito.

 

Lista

Quero uma casca bonita para me desfazer em flores.
Quero uma vista horizontal verticalizada.
Quero um buquê de margaridas com abelhas a zumbir.
Quero uma montanha de papel branco para rabiscar.
Quero um pente que desembarace os nós.
Quero uma gota de sangue na pétala alva do meu jardim.
Quero um pouco de branco no meu sangue, também.
E uma vida além da janela que emoldura meu quarto, parece TV.

E eu. E só.

Brincadeira de criança

Morto-vivo-morto-vivo-morto-morto-vivo-morto…

Uma sequência capaz de nos transportar de volta ao passado infante, ao tempo em que se abaixar ou erguer era a única coisa que fazíamos ao ouvir essas palavras. Eram ditadas por uma outra criança qualquer — às vezes por nós mesmos — enquanto as demais cumpriam seu papel: vivo, levante; morto, abaixe. Palavras simples gerando ações ainda mais simples. Não existiam mensagens subliminares as quais apenas os “mais inteligentes” seriam capazes de decifrar, nem quaisquer outras ações eram requeridas além de abaixar e levantar. As regras eram bastante compreensível pela falta de flexibilidade: um ditava os movimentos, os demais os cumpriam; e quando um dos participantes errava a sequência era eliminado da rodada. Sem grandes mistérios.
Nenhuma das crianças imaginava as possíveis implicações da brincadeira, pois era apenas isso: um jogo. Não se sentiam dominadas por aquele que comandava suas ações, nem ultrajadas quando, ao errarem, eram excluídas do grupo até o início da próxima rodada. O mundo infantil é simples porque as crianças ainda não descobriram que existem tons de cinza entre o branco e o preto. Alguém pode ser “bom” ou “mal”, “bonito” ou “feio”, “vivo” ou “morto”… Jamais ambos, e nem sequer consideram que exista algo entre os dois extremos.
E assim deve ser, porque crianças não devem se preocupar com as questões filosóficas que assombram a mente adulta, nem precisam saber de todas as variedades de interpretação que sua simplória brincadeira pode trazer. Crianças não interpretam ou racionalizam, apenas enxergam aquilo o que lhes é apresentado. Não tentam entender os significados ocultos das palavras “vivo” e “morto”. Não pensam que sua brincadeira é um tanto macabra quando racionalizada. Não ridicularizam aquele que errou ou o excluem permanentemente de sua pequena sociedade. Não temem a voz que os comanda. Não reprimem por prazer, nem obrigam todos a jogar seu jogo de vida e morte. Não desfazem amizades por divergências quanto a honestidade de se estar vivo ou morto.

Crescem, porém, as crianças. Tornam-se adultos que não são bons ou maus, bonitos ou feios, vivos ou mortos, mas uma mistura de todas as partes, cada qual com suas medidas e medidores particulares. Não cremos mais apenas no dualismo, porque a multiplicidade se manifesta e é mais forte do que os conceitos bipartidários que tínhamos antes. Alguns chamam de evolução, outros de retrocesso — faz parte da diversidade do mundo adulto. Como crianças podemos ser tão simples e ao mesmo tempo tão complexos que torna difícil entender nossa própria mentalidade infantil quando adultos.
Sim, somos simples porque o mundo tem apenas duas cores. Mas mesmo essa simplicidade é racionalizada quando crescemos. Tentamos agora entender o porquê dela, questionando com a razão socrática o que só pode ser entendido enquanto crianças. O grande problema desse mundo preto-e-branco é que ele cabe apenas na mente infantil. Ao tentar perpetuá-lo ao crescer, os tons intermediários são reprimidos ou excluídos e a mente adulta não é capaz de lidar uniformemente com esse dualidade. Então, as repercussões são mais graves do que perder uma rodada…

Morto-vivo-vivo-morto-morto-morto-vivo-morto…

Não são mais apenas palavras gerando ações sem significados. Vivo é aquele que enlaça suas mãos ao redor do pescoço de outro, morto aquele que sufoca entre seus dedos. Vivo é quem tem a corda nas mãos; morto quem a tem apertando a garganta. Vivo é quem aponta a arma; morto, quem é atingido pela bala. Vivo é quem tem dinheiro para trocar por um celular; morto quem não o tem nem para comida. Vivo é aquele que sabe se portar diante do dominador; morto quem o contraria. Vivo sabe viver; morto tenta sobreviver.
Mas quanto a racionalização falha, também temos nossa cota de absurdos…
É quando vivo é quem tem vícios para nutrir; morto aquele que os nutre. Vivo é quem cresceu aprendendo; morto quem cresceu sobrevivendo. Vivo, aquele que tem casa de tijolos; morto quem não conseguiu a construir. Vivo aponta o dedo; morto tem o dedo apontado. Vivo usa máscaras para ser visto melhor; morto para se tornar invisível. Vivo, quem se ergue; morto quem não consegue. Vivo, quem se cala; morto, quem fala.
Para o vivo, tudo está sempre bem desde que não o mandem se abaixar. O vivo não é primordialmente cruel, apenas não sabe conviver com os mortos porque desde a infância ainda não entendeu o que é ser um. Vivo é aquele que vencia a brincadeira sempre em pé, jamais agachado, e ainda hoje pensa que todos tem a mesma capacidade de se manter de pé sem ajuda de terceiros. Ele ainda vive naquele mundo da infância quando apenas se deixava o jogo por uma rodada e logo em seguida podia retornar. Sem ter despertado completamente do sonho infante, não entende que existe uma única rodada. Não percebe que o mestre dita as regras, mas são os outros participantes que tornam o jogo possível.
O morto já se questionou: “E se invertêssemos os papéis? O mestre ainda seria mestre ou poderíamos decidir de modo diferente quem vive e quem morre? Poderiam todos viver, mesmo diferenciados?”.
O vivo não quer enxergar os participantes eliminados porque eles não lhe dizem respeito: só é importante que ele permaneça em pé até o final do jogo. “E se tentar ajudá-los, isso não iria me prejudicar? Se oferecesse minha mão para que ele levantasse, não me distrairia do jogo e poderia eu mesmo ser morto? Se sou capaz de me erguer sozinho, ele também é”.
O morto olha para o vivo de baixo para cima, querendo que ele o ajude a levantar. O vivo olha para o morto de cima para baixo sem saber que poderiam ser iguais, que erguer o morto não o fará menos vivo.
O morto não implora porque mortos não falam.
O vivo não vê porque não quer.

Botão Emergencial

Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
Você é louco?
Não, sou poeta.

Mário Quintana

Em caso de emergência, quebre o vidro.
Ou rompa o lacre. Ou puxe a alavanca. Ou aperte o botão. Não importa a forma quando mensagem é significativa por si própria.
Sempre que vejo orientações como essa em elevadores, janelas de ônibus, paredes de prédios residenciais e comerciais ou onde mais elas decidam ser pregadas, penso em como a vida seria melhor caso as pessoas também tivessem uma alavanca ou botão o qual pudéssemos pressionar em caso de emergência.
Imagino um mundo onde todos nós teríamos um botãozinho na nuca para que qualquer um possa acionar quando passamos dos limites racionais que nos orientam desde o surgimento da humanidade. Os tais limites e padrões mudaram — a duros custos, porque o ser humano é teimoso e não gosta da possibilidade de ter de sair de sua zona de conforto por nenhum instante — mas o princípio é o mesmo. Discussões conceituais infinitas podem ser travadas com uma infinidade ainda maior de argumentos, mas não é esse o ponto central desse texto. Demoramos séculos para alcançar um nível de liberdade de expressão em que podemos professar o que quisermos… Desde que estejamos prontos para arcar com as consequências. Alguns parecem se esquecer dessa última parte.
Mas voltemos ao Botão Emergencial (sim, esse seria o nome do mecanismo). Quando penso em como isso seria aplicável em uma raça onde a palavra de ordem máxima é intolerância a opiniões divergentes, as coisas se complicam. Então, irei ignorar essa característica aparentemente primordial da mente humana, ou ao menos diminuí-la a um nível controlável pelo tal botão. Antes de explanar suas aplicações, é bom pensar no que exatamente esse botão faria ao ser acionado. Não, ele não seria uma arma. Ninguém seria morto pelo acionar do botão, nem mesmo ferido física ou mentalmente. A única coisa que o Botão faria, a exemplo dos mecanismos de emergência de elevadores, ônibus e prédios, seria soar um alarme. Sim, uma sirene de tom agudo e insuportável soaria na mente do sujeito. O som seria apenas interno, como um cutucão na consciência alheia para alertá-lo de sua provável incoerência.
Muitos poderiam dizer que nesse mundo hipotético teríamos ainda mais intolerância, provocando uma certa “ditadura da opinião”. Afinal, se todos saíssem por aí apertando botões alheios sem a menor tentativa de diálogo — algo que nunca ocorre no mundo atual, é claro — então logo iria se espalhar mais ódio e destruição pelo mundo. Mas, no meu Maravilhoso Mundo da Disney Hipotético, o Botão não poderia ser usado para nenhuma forma manipulação ou de modo ditatorial, sem exceções. Além disso, ninguém poderia apertar o Botão simplesmente por discordar da opinião alheia; seu propósito não é o de uniformizar o pensamento. Por último, o Botão seria utilizado apenas após todas as tentativas de diálogo terem falhado, como recurso final aos indigentes mais persistentes.
Seria uma forma pacífica e indolor de manifestar indignação com certos comentários que escutamos por aí. O primeiro alvo seria aquele adora gritar ao mundo sua opinião sem nem ao menos considerar se é realmente isso o que pensa ou está apenas bancando o papagaio e repetindo um monólogo incutido em sua mente por terceiros. Ou o famoso argumento do “porque sim”. Praticado desde a infância, observa-se sua evolução periódica ao longo da vida para parecer menos infantil, mas os meios são os mesmos. Assim, seria mais fácil apenas pressionar o Botão Emergencial quando o diálogo coerente se prova inútil do que prosseguir em uma discussão cíclica.

Por que você acha que homossexuais não devem ter os mesmos direitos de heterossexuais? Por que você acha que negros são inferiores a brancos? Por que você acha que esquerdista e comunista é a mesma coisa? Por que você acha legal chamar uma mulher na rua de “gostosa/linda/ôlaemcasa”? Por que você não considera que outros pensem diferente de você? Por que você quer impor sua religião aos outros? Por que não aceita que seu amigo torça para outro time ou tenha preferência política diferente da sua?

“Porque sim” não é uma boa resposta para nenhuma dessas e outras tantas questões, mas é o “argumento” (cof cof) principal do primeiro alvo da magia do Botão. Toda vez que alguém dissesse algo como “porque é contra a minha moral” (A.K.A “porque sim”), poderíamos apertar o botãozinho em sua nuca e imediatamente o sujeito se daria conta de que sua moral pode ser diferente da minha, de que nem tudo o que ele pensa é uma verdade absoluta, que o mundo é muito maior do que o círculo que o cerca e cada indivíduo tem direito a ser o que é sem estar constantemente sendo julgado e apontado por isso. Talvez o Botão o fizesse perceber que apesar dele ser um bom cristão, outros podem ser bons islâmicos/judeus/umbandistas e cada um deles vê o mundo de uma forma – e nenhum está errado! Talvez o Botão fosse a ferramenta que o permitisse abrir os olhos para as diferenças no mundo e aceitá-las sem fazer caretas de desaprovação. Talvez ele passasse a cumprimentar seu vizinho homossexual com o mesmo respeito usado com o heterossexual. Talvez ele percebesse ser negro não é sinônimo de ser ladrão e que o preconceito que cresceu dentro dele é infundado. Talvez a sirene o incomodasse tanto que ele se forçasse a parar e pensar antes sair por aí repetindo maledicências que ouviu sem se preocupar com a verdade (ou não) de suas palavras. Talvez, e apenas talvez, isso o forçaria a ter opiniões próprias.
Depois, não mudado seu pensamento, poderia ainda continuar gritando todos os tipos de preconceitos ou opiniões (sic) pelo mundo. Poderia continuar achando que negros fazem trabalho mal-feito, que homossexuais são uma abominação da natureza e pobre só é pobre porque não tem vontade de trabalhar. Poderia ainda professar seu ódio a outros, mas teria ao menos refletido a respeito antes. Poderia querer espancar um casal gay com uma lâmpada florescente, mas ao fazê-lo saberia de suas consequências. Poderia olhar torto para o candidato esquerdista e xingá-lo de comunistas desgraçado, ordenar que volte para Cuba e ainda assim não estaria errado, caso tivesse consciência de suas palavras. Poderia, inclusive, isolar-se do mundo para não ter de conviver com tantas raças, gêneros, identidades, visões de mundo, religiões e opiniões diferentes. Poderia ignorar a pluralidade da raça humana e viver dentro de sua bolha particular. Nada disse seria errado (apenas mais uma dentre as tantas opiniões controversas desse mundo), desde que antes esse sujeito tivesse parado por um momento e realmente pensado a respeito de tudo isso. Cinco minutos, um dia, uma semana, dez anos: não importa. Parar. Pensar. Questionar. Só então, falar, professar e discutir da forma que achar conveniente. Botão algum é capaz de mudar isso, mas também ninguém pode parar as ramificações que se expandem a cada segundo nesse mundo gigantesco. Basta decidir como viver com esse fato.

A rainha da beleza

[A rainha da beleza está adormecida].
Quando aquele primeiro pensamento desprovido de intenção cruzou sua mente, já era tarde demais. Não era capaz de se recordar quando dormira pela última vez, sabia apenas que sua vigília durava dias que poderiam facilmente ser transformados em semanas ou anos. Ou que ele jamais seria capaz de dormir novamente até o dia em que a morte o levasse para o outro mundo. [Existe outro mundo?]. Naquele único instante pacífico, pensava na mulher com quem compartilhara quase quarenta anos de sua vida – e no dia de sua morte.
“Teria feito sessenta e sete anos hoje.”

Particularidades da idealista, a quem interessar.

Esse texto é bastante pessoal. Ao contrário da maioria das coisas que escrevo, não é fantasioso ou fictício, mas a realidade com a qual eu convivo todos os dias. Talvez seja desnecessária essa introdução, talvez ninguém se dê ao trabalho de ler isso – amo todos os que tentarem – mas preciso explicar algumas coisas aos possíveis leitores. Existem pessoas tímidas no mundo, várias, e também existem as neuróticas. Sempre achei que eu me encaixasse entre esses dois conceitos, até descobrir que tenho um transtorno de personalidade em estado avançado, digamos. Chama-se fobia social. Eu poderia procurar os termos técnicos, mas vou tentar explicar com minhas palavras. Fobia social, ou transtorno de ansiedade social, é uma espécie de timidez extrema, combinada a um medo constante de rejeição e (obviamente) do contato social. Muitos poderiam pensar que é uma “frescura”, “coisa de gente que quer chamar a atenção” – você que pensa assim, não prestou atenção na parte que eu falei de medo extremo do contato social? É um pavor irracional, sem fundamento nem razão: está “impresso” na minha mente provavelmente desde que eu nasci – já que não passei por nenhum trauma grave na vida, como uma mãe alcoólatra ou um pai que me espancava diariamente. Enfim, levou um tempo considerável para que eu escrevesse isso e tomasse coragem de publicar, mas aqui está. Talvez ajude alguém a entender melhor a situação.

Certezas da mentira

As pessoas costumam inventar um monte de mentiras sobre si mesmas para parecerem mais interessantes à sociedade, e Ilona não é nenhuma exceção a essa regra. Muitos mentem sobre a aparência, dizem-se altos, loiros e de olhos azuis para aqueles que nunca o viram pessoalmente, apenas para insinuar aquela imagem tida como “perfeita” na mente alheia. Outros escondem suas – julgadas – imperfeições sobre máscaras de um falso perfeccionismo que não engana ninguém, mas todos fingem acreditar apenas para que possam fazer o mesmo. Há aqueles, tais como Ilona, que não vêem a necessidade de mentir a respeito de seu porte físico. Não, ela não é nenhuma beldade, e tem consciência disso – motivo pelo qual, talvez, não se atenha à esta face da mentira. Mente, sim, pois é uma característica humana impossível de ser desobedecida, algo já arraigado nas mais íntimas partes de cada ser; não é opcional, não é passageiro, não é negociável. São pequenas ou grandes mentiras que constroem a humanidade e a fizeram evoluir e se denegrir desde o primeiro dia de sua existência. Não, ninguém se lembra de tal dia, mas tenha certeza de que tudo começou com uma mentira.

“E Deus criou a Terra” ou “O big-bang explodiu”: não importa, é uma mentira. Não apenas isso, mas a melhor mentira já contada.

Cerca elétrica

Há uma cerca elétrica naquela casa. Uma barreira de fios metálicos dotada de propriedades altamente condutoras, de acordo com os especialistas, devido sua ductilidade e caráter metálico. Há uma rede de energia elétrica a alimentando e mantendo aquela cerca funcionando perfeitamente. Se um pássaro desatento pousar em um de seus fios nada impedirá que a carga frite suas perninhas inocentes, imploda seu corpinho frágil e faça com que ele se imobilize para sempre.
Há uma cerca elétrica rodeando aquela casa imponente, um guarda-máquina que trabalha em tempo integral sem remuneração alguma; que não necessita de oito horas diárias de sono para se manter operacional – sua única fonte de alimento é a energia que percorre incansavelmente seus longos fios. Nada impede seu funcionamento pleno, desde que se mantenha abastecido da energia mortal. Chuva, vento, neve ou sol não incomodam seu sistema mecânico, projetado para ser o melhor segurança deste mundo.
Mais uma cerca na sociedade, mais uma divisão, um novo tipo de segregacionismo barato – bem, nem tão barato. Ou será contenção? Cerca para quê? Para quem?
É a cerca elétrica que afasta os indesejáveis violadores da falsa pacificidade humana, ou quem fecha os olhos daqueles em seu interior para a existência deles. São fios compridos, esticados em linhas paralelas, dotados da frieza humana e da força da natureza (mesmo que artificial). Mais um instrumento que serve à hipocrisia: constrói-se como uma arma neutra para a suposta proteção individual, a não-violação da privacidade se põe acima de todo o resto. Não sabem de quem se protegem, nem o porquê. Mas as cercas existem mesmo assim. Nunca olharam nos olhos daqueles que tentam afastar com suas dezenas, centenas ou milhares de volts programados para se atiçarem ao menor contato. Não tentaram sair da inércia, quebrar os “padrões de segurança”. A cerca não é o problema, mas, sim, o desespero provocado por sua necessidade. Esse, sim, nos faz querer gritar.
Há uma cerca elétrica naquele casarão ficcional. O jardim também é enorme e separa a cerca da casa – dupla divisa para os menos afortunados, ou mais desprovidos de ilusão. Cercas-vivas cobrem as grades altas antes dos fios elétricos se esticarem horizontalmente nas pontas, os arames fazendo sua curva para dentro do jardim: mantenha-se longe! São trepadeiras densas, heras malditas que transformam as grades espaçadas em uma expeça colcha verde.
Cerca-viva, cerca-morta: uma visão desprezível do excesso de zelo. Ambas escondem, mais adiante, a varanda apertada, com suas colunas de madeira sustentando o telhadinho que cai sobre ela. É uma daquelas casas surreais dos filmes hollywoodianos, do tipo que não se vê em qualquer esquina desse imenso país. Poderiam ter optado por outra varanda, sem colunas, ou varanda alguma, mas uma área ampla e descoberta, mas preferiram a segurança da imitação. Cópia da cópia, cercada por aquela energia invisível – ao menos até ser tocada.
Há uma cerca naquela casa, e ninguém entende por quê. Mais absurdo, há colunas brancas escondidas pela cerca, pela grade, pela hera. E ainda, há um extenso jardim que não deixa ninguém saber da hipocrisia de seus moradores. Talvez, então, seja esse o propósito da cerca: não assegurar a propriedade e as vidas daqueles em seu interior, mas exila-los para impedir que outros testemunhem sua vergonha. Talvez os inquilinos pensem que a cerca dá à casa um ar de mistério, um segredo conhecido apenas por aqueles que têm o privilégio de passar pelo portão cerrado.
Talvez haja uma mulher histérica vivendo naquela casa assustadoramente fantasiosa, que goste apenas da própria companhia e a de mais ninguém; portanto, cerra-se no interior de sua cerca elétrica. Impede o mundo de alcança-la.
Talvez haja um homem sisudo que não suporte olhares estranhos enquanto senta em sua varanda fictícia e bebe uma cerveja gelada. Ele não gosta de ser perturbado, seja por conhecidos ou desconhecidos, sofre de uma grande fobia social que o impele a permanecer trancado dentro de casa pelo máximo de tempo possível. Às vezes sai para ir até o mercado, mas desiste, volta na metade do caminho e faz compras online. Impede-se de alcançar o mundo.
Talvez seja uma casa de repouso para aqueles que buscam a tranquilidade em meio ao turbilhão da cidade tão ruidosa. É onde se reúnem os loucos, os fóbicos, os entediados, os relaxados, os ansiosos, os mal-amados, os sacanas, os desentendidos, os pseudo-intelectuais, os depressivos, os iludidos, o falhos, os manequins… Uma infinidade de desencaminhados se aglomerando no mesmo lugar. Isolam-se do restante do mundo.
Uma infinidade de “talvez” pode ser descrita na tentativa de justificar as cercas, grades e jardim que protegem a casa surreal. Nenhum deles é completamente correto ou oferece cem por cento de certeza: apenas suposições dramáticas de uma mente inquieta. Não existe certeza do saber, diria, mas não desejo ser filosófica aqui. Também não sei o que desejo além de uma bonita casa com cerca elétrica, exatamente como aquela dos filmes.

Eu li uma vez…

Eu li uma vez
que bloqueio criativo não existe, e concordo.
Nada bloqueia minha mente,
Nada a impede de trabalhar ou
tranca as engrenagens que
gritam incansáveis seus clamores mecânicos.
Nada, ao não se o
MEDO
Medo de ter (ideia),
Medo de perder (imaginação),
Medo de ser (ruim),
Medo de escrever (sem razão).
Nada apaga o fogo do pessimismo exacerbado
(pois é útil, quando moderado)
ou acalma a inquietação contínua:
Epilepsia mental,
sinto-a me tomando por completo;
Nada acalenta o espírito torturado
nem mascara a mente torturadora.
Não vejo vislumbre da Lua e é
Ela me punindo pela desobediência:
Caçadora, diz, cumpre teu papel.
Senhora, respondo, dai-me inspiração.
Não – inspiração é um mito,
Concordo – da-me assim mesmo!,
Não.
Então não me negue o direito de saber como acabarei!
Está além de mim, pupila,
Ó musa, não suportarei tais sofrimentos sem saber,
Pois saibas disso: não existe saber – é uma ilusão.
Ilusão maldita, encoberta pelas cortinas do conhecimento.
Não existe saber, nem conhecer – sabes.
Sim, nem inspiração, nem sonho, nem possibilidade,
pois somos todos ínfimas criaturas diante dos grandiosos
deuses que andam sobre a Terra. Não tu, Deusa, pois
és mais do que gigante
Falo dos outros, deuses humanos, que roubaram
um pouco do poder dos céus para adquirir o saber, e
desde então caminham entre nós como mortais, mas já são divinos.
Quem se diz divino entre vós?
Eles, Senhora, que retiraram de ti uma parcela do poder dos astros.
Ousados.

Desejas ser um deles?
Seria eu digna, Minha Senhora?
Diga-me tu.
Sou.
És?
Sou?
Não sabes?
Não.
Então já sabes, pois não existe saber.

Sobre a ausência, crises e maldições literárias (e um pedido de paciência).

Desde já, perdão pelos eventuais erros ortográficos, a pressa e fúria são as culpadas.
Foi um longo recesso, ou melhor, uma completa crise existencial e literária de minha parte. Usando-me da expressão popular que eu detesto, o Idealista ficou “às moscas” (que coisa horrível de se dizer). Bem, não ganho nada com esse blog além da satisfação de poder publicar livremente o que penso e receber comentários maravilhosos (ou não) que me animam a perseguir meu sonho de me tornar uma escritora. Enfim, podia simplesmente ter voltado a postar contos como nos outros “retornos”, mas a verdade é dura: perdi todo o HD do meu computador e não tinha backup algum nem dos meus preciosos documentos, nem das minhas infinitas músicas. Esse triste fato aliado à chegada do fim de ano com a pressão (autoinflingida) das provas de vestibular – sim, estou nessa incrível fase da vida, quando o suicídio não parece ser a pior das opções – acabou com meu ânimo para escrever qualquer coisa.
Então, após seríssimas reflexões e muitas tentativas vãs de fazer os números gostarem de mim, ou ao menos se fixarem em minha memória, resolvi que é hora de por tudo pra fora mais uma vez. Por que publicar isso, Diana? Não tem um diário ou qualquer coisa parecida, não? É, tenho sim, mas o papel não pode me responder, então cá estou implorando por respostas honestas de qualquer vivalma que, por ventura, esteja lendo esse relato-não-tão-relato-assim , concordando ou não com minhas opiniões. Paciência, caros possíveis leitores, e acompanhem meu raciocínio antes de me apedrejarem, pois escrevo hoje sobre aquilo que é minha paixão suprema e causa de sofrimento ao mesmo tempo: literatura.
Em agosto desse ano, a tal declaração do escritor Raphael Draccon despertou a fúria de leitores e muitos mal entendidos que perduram até hoje. Esclareço de antemão que eu sou absolutamente apaixonada pelo Raphael e nutro uma paixão platônica por uma se suas personagens (Ariane) desde 2007, quando me encantei com seu modo de escrita; contudo, não parem de ler por isso, odiosos! Exatamente por esse motivo, a matéria digital d’O Globo me abalou tanto. Quando li pela primeira vez já queria saltar no pescoço da jornalista descarada que manipulara as palavras do querido Raphael daquele modo. Mas, já então, fiquei preocupada com a suposta declaração do autor. Instalada a polêmica, analisei a reportagem. Fiquei assustada. Quis embarcar no primeiro avião para o Rio de Janeiro e tirar satisfações com Draccon por aquela afirmação de que era importante que o escritor fizesse um malabarismo exibicionista (não nessas palavras, obviamente) em sua vida para agradar possíveis leitores, ou seja, todas as coisas impossíveis para alguém extremamente tímida como eu – já disse que sofro do que chamam “ansiedade social”? Pois é, só descobri o termo esse ano, mas é isso mesmo: fobia, medo, pavor de situações sociais. Como alguém assim teria qualquer chance de se lançar no mercado editorial brasileiro, perguntei-me, quando um de meus autores de fantasia nacional favoritos declarava publicamente que isso não poderia acontecer? Minha parca autoestima se dissolveu na hora, porque, no fundo, eu sempre soube que isso é a verdade, que eu tenho de aprender a lidar com essa ansiedade caso queira ser qualquer coisa além de redatora de notas de rodapé. Mas, foi diferente quando alguém que eu admiro afirmou que, por conta desse defeito incômodo, meu sonho está em risco. Sem me estender muito mais nisso, deixo apenas minha convicção de que SEI que Raphael está certo, admiração eterna por seu trabalho e vamos partir para a pauta que eu queria.
Diante disso, ressurgiu uma questão que sempre me incomodou muito. Como leitora de literatura fantástica – e não me refiro apenas a obras de Gabriel Márques e Borges, mas aquele estilo “Espada e Magia” – sempre me vejo furiosa quando alguém critica o estilo por puro preconceito, fundamentado na opinião sem nexo de que é uma literatura inferior. Pergunto-lhes, então: o que, diabos, seria uma “literatura inferior”? QUEM definiu esse parâmetro? Baseado EM QUÊ argumentos além de tua opinião pessoal? Deixa-me possessa o fato das pessoas julgarem um estilo inteiro por conta de críticos malditos que se julgam no direito de decidir o que é uma literatura “boa” ou “ruim”. Não estou dizendo que todos devem amar e ler fantasia, jamais seria tão presunçosa! O que peço é a simples consciência de que o que tu julgas bom pode ser o péssimo de outra pessoa, e vice-versa. Estou dizendo que é impossível julgar literatura generalizadamente. É possível, alias um direito, expressar tua opinião a respeito de certo autor, certo livro, certo gênero. É um direito de cada leito odiar uma obra por seu conteúdo, sua narrativa, seu modelo, etc. Ou amar um autor por seu carisma, seu estilo literário, sua personalidade. Ainda, criticar, de modo coerente (segundo tua visão de coerência), qualquer obra/autor que não gostes, ou detestes, ou odeies e queiras ver morto e estraçalhado debaixo de um caminhão! Mas então, teus direitos terminaram, pois tu não podes querer impor aos outros essa opinião, que é exclusivamente tua, e não um modelo de boa ou má literatura a ser seguido pelo resto do mundo. Não tens o direito de impor teu gosto e teu censo crítico aos demais. Entretanto, nossa cultura é tão elitista em relação a literatura que se tornou normal apenas aceitar a palavra de críticos – esses mal-amados – em relação à quaisquer livros. Se o Senhor Grande Crítico Literário disse que o livro é medíocre e não vale a pena ser lido – mesmo que os exemplares vendidos digam o contrário – então é essa a verdade incontestável e não se fala mais nisso! Mas quanta ousadia, Senhor Crítico, qual deslumbramento narcisista esse! O mundo não gira ao redor do senhor! Espero do fundo do meu coração que essa espécie tenha o mesmo fim daquele senhor de A Dama da Água (não sei o nome da personagem), morto por seus julgamentos precipitados.
Pois, se eles têm esse direito, eu também, por que não? Assim, para mim, todos os livros do Nicholas Spark – e por puro desgosto do gênero “água com açúcar” de seus romances – seriam amontoados em uma pilha gigantesca e fariam a maior fogueira que o mundo já viu! Se opinião é critério para massacre e imposição imperialista sobre as demais, então também posso me utilizar de seus critérios: considero-o um autor medíocre, e seu tipo de literatura “inferior”. Pronto, não temos mais Sparks no mundo, e exijo que todos acatem minha decisão porque me considero dona da verdade, fim. Ah, dir-me-iam alguns mais céticos, mas eles estudaram para isso, devem saber o que é bom ou não. Sabem sim, em termos de construção narrativa, produção textual, gramática, coesão histórica, linearidade, e todos os demais critérios analíticos que a profissão exige. Vejam bem, não proponho que cacemos críticos como as bruxas medievais, mas que tenhamos certa coerência ao lê-los, tendo em mente que por mais imparcial que tentem parecer, seus gostos pessoais sempre se sobressairão em suas análises, para que não tomemos como verdades universais suas palavras. Estabeleçam, por favor, seus próprios padrões de leitura, não se deixem levar exclusivamente pela opinião experiente e formada dos acadêmicos, é esse meu apelo infantil.
Almejo, um dia, decidir exatamente sobre o que quero escrever, pois é esse meu grande dilema. No momento, não tenho capacidade alguma de escrever sobre o que realmente gostaria, para isso, preciso criar mais experiência como leitora das infinitas obras que tanto nos inspiram. Contudo, de uma coisa tenho absoluta certeza: não serão os críticos a julgar meus padrões, isso apenas eu posso fazer.